Cerca de 40% das
mortes por coronavírus nos Estados Unidos teriam sido
evitadas se o país
tivesse se mantido com uma taxa média de mortalidade equivalente à de outras
nações ricas na pandemia, aponta o relatório de uma
comissão de acompanhamento de políticas de saúde pública no governo Donald
Trump da prestigiada revista científica britânica “The Lancet”.
Embora a comissão critique a resposta "inepta
e insuficiente" do ex-presidente Trump à
Covid-19, o relatório afirma que as raízes dos problemas de saúde do país são
muito anteriores.
Quase 470 mil americanos morreram de
coronavírus até agora e cerca de 27 milhões de pessoas foram infectadas. Os
números são, de longe, os mais altos do mundo.
Trump é amplamente criticado por não levar a pandemia a sério
rapidamente, espalhando teorias da conspiração, desencorajando o uso de
máscaras e minando as iniciativas de cientistas e outros que buscavam combater
a propagação do vírus.
“Os EUA se saíram muito mal nesta
pandemia, mas o estrago não pode ser atribuído apenas a Trump. Também tem a ver
com falhas sociais . Isso não vai ser resolvido com uma vacina”, disse ao
jornal britânico “The Guardian” Mary Bassett, integrante da comissão e diretora
do Centro FXB para Saúde e Direitos Humanos da Universidade Harvard.
A comissão disse que Trump “trouxe infortúnio para os EUA e o planeta”
durante seus anos no cargo, mas a crítica contundente não culpou só Trump,
vinculando suas ações às condições históricas que tornaram sua presidência
possível.
“Ele foi uma espécie de ponto culminante de um determinado período, mas
não é o único arquiteto”, disse Bassett. “Decidimos que é importante colocá-lo
em contexto, não para minimizar o quão destrutiva foi sua agenda política e seu
fomento pessoal à fogueira da supremacia branca, mas para colocá-lo em
contexto."
Saúde pública degradada
A comissão enfatiza que o país entrou na pandemia com uma infraestrutura
de saúde pública degradada. Entre 2002 e 2019, os gastos com saúde pública
dos EUA caíram de 3,21% para 2,45% -- cerca de metade da proporção gasta
no Canadá e no Reino Unido.
Copresidentes da comissão da “Lancet”, os médicos Steffie Woolhandler e
David Himmelstein, professores da City University of New York, que são
defensores de um sistema de saúde único, ainda que privado, como o proposto
“Medicare for All”, apontam que o relatório reúne décadas de políticas sociais,
econômicas e de saúde que aceleraram as disparidades do país.
A expectativa de vida dos americanos começou a ficar atrás de
outras nações industrializadas há quatro décadas. Em 2018, dois anos antes da
pandemia, 461 mil americanos teriam morrido a menos se nos EUA as taxas de
mortalidade fossem semelhantes às de outras nações do G7, como Canadá, França,
Alemanha, Itália, Japão e Reino Unido
“A
coisa mais importante que precisamos fazer em nosso país é diminuir as enormes
e crescentes desigualdades que surgiram”, disse Himmelstein ao jornal “USA
Today”.
A Covid-19 afetou desproporcionalmente
os afro-americanos, com taxas de mortalidade entre os negros até 50% maiores em
comparação com os brancos. As mortes por coronavírus entre pessoas negras são
de 1,2 a 3,6
vezes mais altas do que entre brancos e as disparidades são especialmente altas
entre os adultos de meia-idade, possivelmente um sinal de
condições de vida mais aglomeradas e empregos que não permitiam que as pessoas
se distanciassem com segurança, indica o relatório.
Medidas de saúde pública como uso de máscara e distanciamento físico
poderiam ter salvado muitas vidas, disse Woolhandler, mas Trump não conseguiu
criar uma resposta nacional, deixando as decisões mais cruciais durante a
pandemia para os estados.
Suas ações "fizeram com que muitos cidadãos não levassem [a Covid]
a sério e interferiram no tipo de resposta coordenada que tem sido usada em
muitos países que tiveram mais sucesso do que os EUA no controle da
epidemia", disse Woolhandler.
Além da resposta à pandemia de Covid-19, o relatório aponta que Trump
enfraqueceu o chamado Obamacare e mais 2,3 milhões de americanos ficaram sem
seguro-saúde, um número que não leva em conta aqueles que perderam a cobertura
oferecida pelos seus empregadores durante a pandemia.
A comissão, porém, não atacou apenas Trump e buscou raízes históricas do
desempenho ruim dos EUA na área da saúde:
·
A eleição de Ronald Reagan em 1980
marcou o fim do chamado "New Deal" e da era dos direitos civis em
favor de "políticas neoliberais" que reduziram os programas sociais.
·
O relatório critica o apoio do
democrata Bill Clinton a medidas que dificultaram o acesso a mecanismos de
bem-estar social, além da assinatura de uma lei federal contra o crime que
levou ao "encarceramento em massa", prejudicando desproporcionalmente
a população de latinos e negros.
·
Os planos de saúde privados cobraram
"despesas gerais e lucros exorbitantes" ao estender uma cobertura
subsidiada pelo governo aos americanos de baixa e média renda com a assinatura
da lei de saúde do ex-presidente Barack Obama, o Obamacare, segundo o
relatório.
A comissão sugere uma longa lista de medidas para reverter as tendências
que afetam negativamente a saúde dos americanos. Entre as soluções está a
adoção de um sistema de saúde de financiador único (um sistema privado
financiado pelo Estado) como o Medicare for All, defendido pelo senador Bernie
Sanders durante sua tentativa fracassada de concorrer à presidência pelo
Partido Democrata.
“Ainda estamos em um buraco
muito profundo. Temos 30 milhões de pessoas sem seguro. Temos dezenas de
milhões de pessoas com seguro insuficiente ”, disse Woolhandler